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Aquela Runner Obcecada

Aquela Runner Obcecada

De estrada ao trail-o meu ponto de vista

Boa noite pessoas

 

Sim eu sei que ando desaparecida, porém por boas razões.

Primeiro arranjei trabalho, não directamente na minha área, mas próximo. Estou a gostar bastante e a aprender imensas coisas, além do benefício de ter colegas de trabalho espectaculares. Não, não é um trabalho de sonho, mas é um trabalho em que consigo ter evolução e é isto que vale mais.

 

Porém hoje quero falar sobre a minha experiência no trail da Lousã. Foi no dia 19 de Junho.

Acordei cedíssimo, às 5:00 da manhã para preparar o pequeno almoço do costume. Comi um crepe de alfarroba e aveia e bebi o chá do costume.Não tenho noção do que se come antes de uma prova deste género e comi isto e senti-me muito bem. 

Encontrei-me com o Zezão, o rapaz que foi comigo, deu-me boleia e trocamos ideias. Este ia ser o meu primeiro trail, sem treinos específicos, sem material, sem sapatilhas... Ia ser um bruto de um desafio. 26,6km e 2000 D+, mas como eu sou uma rapariga de ideias fixas, fui, já estava inscrita e queria desfrutar de um verdadeiro trail.

Encontrei-me na Lousã após uma curta/longa viagem mas sempre em conversa com o Zezão, com o pessoal do Beira-Mar. A maioria decidiu fazer o trail dos 26,6 km, a Mariza fez os 16 km e o Alex fez o ultra.

Eu de todos eles, estava ali um pouco desencaixada, caída de pára-quedas sem o equipamento mínimo. Creio que quem passou bastas vezes por mim na prova percebeu pela minha indumentária  e o facto de não levar água (cingir-me a abastecimentos), acusou que eu era uma caloira, uma deslocada. Mas senti que isso fez-me ser diferente de uma boa forma. Experimentar às mais mínimas condições demonstra algum tipo de força e resistência e nisso passei o teste, uma vez que passei a prova toda com o mínimo dos mínimos de água e pouco ou nada abasteci.

Nesse dia levei mochila de hidratação, que pedi a um amigo, confiou-ma e eu decidi às ultimas não a levar porque não sabia se conseguiria correr com ela. Basicamente deixei a mochila no carro, peguei nas duas barras que tinha e enfiei nos meus calções, ponderei levar o telemóvel, mas o peso dele fazia-me cair os calções e não queria andar na prova em cuecas . O telemóvel ficou e ainda bem.

 

Já na linha de partida, a nossa prova partia às 8:30 (o ultra partiu às 7:30), conseguimos tirar as selfies habituais, rezar as últimas orações e rir.A partida saia na vila da Lousã mesmo ao pé da pousada da juventude.Eu ia com um formigueiro e só pensava "Onde me fui meter!". Mas meti-me e quando soou a partida fui em modo flecha para ganhar algum terreno. Fiz o primeiro km a 3'58, por ser em estrada, ainda parei porque as meias começaram a escorregar e de repente aparece a primeira subida. Bem eu sabia que elas iam lá estar, mas não esperava que assim de repente.

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Mas pronto corajosamente enfrentei a primeira subida que de vertiginosa nada tinha, eu é que fiquei abismada porque pensava que não tinha capacidade de subir, mas consegui. Parti com o meu sensor de competição ligado como já é comum em mim, sou competitiva desde que me conheço, e pronto isto custou-me as primeiras quedas que eu tanto temia. Ora eu como sabem tenho as costas artilhadas, morro de medo de cair, antes prefiro estar a fazer queda livre de um avião. Mas adiante, a minha primeira queda foi modos elegante, fui caindo, levei uma garrafa de água que infelizmente perdi na queda e a partir daí sem água até chegar ao fim. Nesta prova era obrigatório levar um copo de água para podermos abastecer e eu consegui perder a única garrafa que tinha, mas como não pensei nisso levantei-me corajosamente e passado uns metros voltei a cair e cai uma outra vez e pronto assim contei umas quatro quedas e por ali fiquei. O sensor de competição começou a desligar quando me comecei a concentrar em desfrutar da bela serra da Lousã. Comecei a entrar nos trilhos, a ver as lindas paisagens, a flora linda e surreal e a pensar na dureza da prova, ainda nem tinha corrido 4 kms que e já estava a ver  que iam ser 26 km penosos, de uma imponência, uma serra a ser respeitada, um desafio a cumprir. 

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Na serra uma pessoa não pensa tanto em tempos, não dá pelo tempo passar, não olha para o relógio, simplesmente há uma relação com a serra e o atleta, existe um laço que une o coração da serra e do atleta. Posso dizer que em estrada não há lugar a grandes vislumbrações, os atletas em estrada vibram com o apoio do público, com a playlist que levam, com os objectivos que conseguem cumprir, num trail, existe uma panóplia de sensações, o sofrimento é atenuado com a beleza dos trilhos, o apoio dos atletas desconhecidos e conhecidos, a sensação de superação de desafio, há uma toda base de estudo e tempo de reacção. Em trail uma pessoa precisa de equacionar várias coisas, aparecem os obstáculos e temos de os confrontar num mínimo tempo possível. Senti isso inúmeras vezes. 

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Houve um km em que o pior aconteceu, cai de forma sonora e dolorosa. Não chorei, mas apetecia-me chorar. Caí de frente e com os joelhos no chão numa descida muito íngreme. Vinham uns 3 atletas atrás de mim. Vieram logo em meu socorro a perguntar se eu queria ajuda e eu só dizia que não, dizia para eles continuarem que eu conseguia levantar-me sozinha (mas não consegui levantar-me). Eles levantaram-me e eu estava a mancar, perguntaram-me se eu ia continuar e eu nem hesitei, estava ali para acabar, nem que ficasse ali o dia inteiro. Tinha o joelho a sangrar totalmente, com uma ferida bem aberta e achei sensato continuar para não arrefecer e as verdadeiras dores não aparecerem. Custou um pouco mas lá a dor foi dissipando conforme os km percorridos. A partir dessa queda fiquei medrosa e decidi abrandar nas descidas e comecei a ver que era bem forte nas subidas. Ganhava vantagem nas subidas e nos trilhos rolantes, nas descidas não tinha hipóteses. Não tinha sapatilhas adequadas e escorregava em tudo o que era sítio, valeu-me a flora com as suas grandiosas árvores... E algumas silvas que eu fui agarrando e que me provocaram umas belas mazelas na mão, mais sangue a derramar. Só pensava que eu era mesmo uma masoquista. Por cada obstáculo em que eu me deparasse dito perigoso soltava umas belas asneiras, não de ódio mas de euforia. Estava a viver o trail com todos os sentimentos e isso é impagável. Senti que a minha vida fora da serra estava atenuada, a tal relação, laço que falo que há entre o atleta e a serra.

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Por ocasião conheci a @elaeamarmita, a Geisa que consegui acompanhar durante uns bons kms. Esta é a praia dela digamos e que bem que ela esteve e que excelente pessoa que é, se não fosse ela, teria desidratado, Sim eu ia sem reservas de água... Basicamente consegui hidratar-me pouco por apoio de atletas que me deram nas orelhas por ir assim à "maluca". Mas para mim foi uma provação. Sou mais forte do que penso, e aguentei o calor como uma heroína, como uma verdadeira peregrina. Se pensarmos há muitos anos, os nossos antepassados não iam caçar com mochilas de hidratação nem com os mais modernos equipamentos, tinham uma elevada capacidade de sobrevivência e gestão natural, e acho que consegui durante 5 horas fazer o mesmo. Os abastecimentos foram uma mera passagem para mim, trinquei uma fruta, bebia um gole de água e partia em demanda em busca da meta. Queria conhecer mais e mais. Era entusiasmante e só ansiava chegar à meta.

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A serra da Lousã fez-me experimentar várias coisas, era muito técnica, havia locais em que tínhamos de pensar muito,locais perigosos, tivemos de fazer espécies de escaladas, algumas com protecção, outras com fé em Deus e a gritar aos colegas da frente e de trás para ter cuidado com as pedras soltas que nos podiam magoar e fazer cair ...

 

Houve apenas um lugar em que quase tive um acidente perigoso,muito por culpa das minhas sapatilhas e do terreno escorregadio. Havia um trilho rolante, apertado, já nos 20 e pico kms que exigia concentração. Mas quis ser rápida aí, sem hesitar corri depressa, creio que a 4'20 com a máxima cautela. Íamos em paralelo com um tanque de água e à nossa direita um verdadeiro buraco sem fundo. Os riscos eram grandes, um simples passo em falso prometia um acidente em escala. O verdadeiro desastre veio depois. No final do caminho abrandei. Tinha um pequenino pedaço de caminho que não era direito mas sim inclinado, escorregadio. E foi ai que senti o coração fora da boca, pois escorreguei e quase caí para trás. Foi assustador e nem pensei duas vezes. Decidi enfiar-me dentro do tanque de água e por aí fui até voltar a ter um caminho seguro.

 

Os km foram passando, encontrei pelo caminho dois atletas que foram a rolar comigo, e que me perguntaram como é que andava ali sem água. Olhei para o relógio e levava 4 horas a explorar a serra. Disse-lhes e eles disseram : 

-Tu até estas bem melhor que nós porque nós estamos a fazer a prova de 26 km

Eu disse:

-Então, mas eu também estou!

 

Ficaram chocados e para mim foi bom sinal. Decerto viram uma menina loira, ignóbil com calção cor de rosa, já toda assassinada, sem água, sem sapatilhas adequadas e pensar que eu ia a fazer a prova dos 15 km. Bem pois, mas não. E após pedir um pouco de água, encontrei mais uma subida que os deixou para trás. Afinal as meninas tem força e provei isso.

 

Olhei o relógio, 25 km. Bem estava dentro do limite dos kms que a prova prometia, mas ainda faltava. A partir dos 25 km senti uma euforia enorme. Pensava na meta, nos meus colegas que decerto já estariam à minha espera, senti um misto de tudo. Alegria principalmente. Tinha o joelho mais inchado que uma bola de futebol, pisaduras já bem salientes, terra por todo o lado, braços esfolados, mãos cortadas... Bem imaginam...

 

Os últimos metros foram feitos em estrada e o cansaço já se evidenciava, correr em terra e passar para o alcatrão causa uma diferença abrupta. Senti logo na minha coluna artilhada e houve uma altura em que parei e tive de me pôr em posição confortável. Eis que pensei "Acaba esta peregrinação"

Corri com todas as forças que me restavam, poucas ou nenhumas, corri com o coração, senti -me no topo da serra. Obviamente não cheguei em primeiro , nem em segundo nem nada que o valha mas cheguei em 9º lugar, mesmo com todas as adversidades e falta de meios, mesmo sendo a minha estreia, sendo um desafio de louvar e mesmo tendo sido cautelosa em diversas situações que me obrigaram a abrandar....

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Então para mim um trail mais não foi que uma provação da capacidade do ser humano em correr em terrenos improváveis, é uma sintonia com o atleta e a serra, é viver e respirar o ar puro da natureza, é amar o nosso país que tem tão belas paisagens, é sem dúvida uma comunhão entre a alma e o corpo. Saí da serra com uma leveza, não pelas calorias gastas, mas pela purificação que recebi...

 

Pareço uma profeta a falar, mas para mim o trail, neste caso o trail da Lousã, é algo que se vive e experiencia, é sem dúvida um desafio e a prova de que se somos capazes de enfrentar as mais duras condições atmosféricas, de terreno, de perigos, somos capazes de tudo.

 

O trail deu-me isto e muito mais. Nunca na vida iria ver aquelas paisagens daquela forma que vi, nunca iria aqueles lugares de outra forma... Simplesmente foi uma experiência única a repetir em breve em condições adequadas, e Lousã para o ano brindo-te a ti por ousares ser um misto de tudo e nada, tudo o que se pode viver de bom  e nada que seja expectável.

 

Se aconselho irem a um trail? Sim e sim. Desafiem-se e sejam aquilo que querem ser na serra, felizes e lutadores.

 

Boa noite.

 

 

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